quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

O DIREITO DE RELIGIÃO NO BRASIL


I - DA LIBERDADE DE RELIGIÃO
A Constituição Federal consagra como direito fundamental a liberdade de religião, prescrevendo que o Brasil é um país laico. Com essa afirmação queremos dizer que, consoante a vigente Constituição Federal, o Estado deve se preocupar em proporcionar a seus cidadãos um clima de perfeita compreensão religiosa, proscrevendo a intolerância e o fanatismo. Deve existir uma divisão muito acentuada entre o Estado e a Igreja (religiões em geral), não podendo existir nenhuma religião oficial, devendo, porém, o Estado prestar proteção e garantia ao livre exercício de todas as religiões.
É oportuno que se esclareça que a confessionalidade ou a falta de confessionalidade estatal não é um índice apto a medir o estado de liberdade dos cidadãos de um país. A realidade nos mostra que tanto é possível a existência de um Estado confessional com liberdade religiosa plena (v.g., os Estados nórdicos europeus), como um Estado não confessional com clara hostilidade aos fatos religiosos, o que conduz a uma extrema precariedade da liberdade religiosa (como foi o caso da Segunda República Espanhola).(2)
O fato de ser um país secular, com separação quase que total entre Estado e Religião, não impede que tenhamos em nossa Constituição algumas referências ao modo como deve ser conduzido o Brasil no campo religioso. Tal fato se dá uma vez que o Constituinte reconheceu o caráter inegavelmente benéfico da existência de todas as religiões para a sociedade, seja em virtude da pregação para o fortalecimento da família, estipulação de princípios morais e éticos que acabam por aperfeiçoar os indivíduos, o estímulo à caridade, ou simplesmente pelas obras sociais benevolentes praticadas pelas próprias instituições.
Pode-se afirmar que, em face da nossa Constituição, é válido o ensinamento de Soriano de que o Estado tem o dever de proteger o pluralismo religioso dentro de seu território, criar as condições materiais para um bom exercício sem problemas dos atos religiosos das distintas religiões, velar pela pureza do princípio de igualdade religiosa, mas deve manter-se à margem do fato religioso, sem incorporá-lo em sua ideologia.(3)
Por outro lado, não existe nenhum empecilho constitucional à participação de membros religiosos no Governo ou na vida pública. O que não pode haver é uma relação de dependência ou de aliança com a entidade religiosa à qual a pessoa está vinculada. Salienta-se que tal fato não impede as relações diplomáticas com o Estado do Vaticano, "porque aí ocorre relação de direito internacional entre dois Estados soberanos, não de dependência ou de aliança, que não pode ser feita."(4)
A liberdade religiosa foi expressamente assegurada uma vez que esta liberdade faz parte do rol dos direitos fundamentais, sendo considerada por alguns juristas como uma liberdade primária.(5)

Consoante Soriano, a liberdade religiosa é o princípio jurídico fundamental que regula as relações entre o Estado e a Igreja em consonância com o direito fundamental dos indivíduos e dos grupos a sustentar, defender e propagar suas crenças religiosas, sendo o restante dos princípios, direitos e liberdades, em matéria religiosa, apenas coadjuvantes e solidários do princípio básico da liberdade religiosa 
A liberdade de religião engloba, na verdade, três tipos distintos, porém intrinsecamente relacionados de liberdades: a liberdade de crença; a liberdade de culto; e a liberdade de organização religiosa.
Consoante o magistério de José Afonso da Silva, entra na liberdade de crença "a liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de religião, mas também compreende a liberdade de não aderir a religião alguma, assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo. Mas não compreende a liberdade de embaraçar o livre exercício de qualquer religião, de qualquer crença..."(14)
A liberdade de culto consiste na liberdade de orar e de praticar os atos próprios das manifestações exteriores em casa ou em público, bem como a de recebimento de contribuições para tanto.(15)
A liberdade de organização religiosa "diz respeito à possibilidade de estabelecimento e organização de igrejas e suas relações com o Estado."(16)
A liberdade de religião não está restrita à proteção aos cultos e tradições e crenças das religiões tradicionais (Católica, Judaica e Muçulmana), não havendo sequer diferença ontológica (para efeitos constitucionais) entre religiões e seitas religiosas. Creio que o critério a ser utilizado para se saber se o Estado deve dar proteção aos ritos, costumes e tradições de determinada organização religiosa não pode estar vinculado ao nome da religião, mas sim aos seus objetivos. Se a organização tiver por objetivo o engrandecimento do indivíduo, a busca de seu aperfeiçoamento em prol de toda a sociedade e a prática da filantropia, deve gozar da proteção do Estado.
Por outro lado, existem organizações que possuem os objetivos mencionados e mesmo assim não podem ser enquadradas no conceito de organização religiosa (a maçonaria é um exemplo desse tipo de sociedade). Penso que em tais casos o Estado é obrigado a prestar o mesmo tipo de proteção dispensada às organizações religiosas, uma que vez existe uma coincidência de valores a serem protegidos, ou seja, as religiões são protegidas pelo Estado simplesmente porque as suas existências acabam por beneficiar toda a sociedade (esse benefício deve ser verificado objetivamente, não bastante para tanto o simples beneficiamento para a alma dos indivíduos em um Mundo Superior — os atos, ou melhor, a conseqüência dos atos, deve ser sentida nesse nosso mundo). Existindo uma coincidência de valores protegidos, deve existir uma coincidência de proteção.
Devemos ampliar ainda mais o conceito de liberdade de religião para abranger também o direito de proteção aos não-crentes, ou seja, às pessoas que possuem uma posição ética, não propriamente religiosa (já que não dá lugar à adoção de um determinado credo religioso), saindo, em certa medida do âmbito da fé(17), uma vez que a liberdade preconizada também é uma liberdade de fé e de crença, devendo ser enquadrada na liberdade religiosa e não simplesmente na liberdade de pensamento.
Pontes de Miranda reforça esses argumentos ao afirmar que tem se perguntado se na liberdade de pensamento caberia a liberdade de pensar contra certa religião ou contra as religiões. Salienta que nas origens, o princípio não abrangia essa emissão de pensamento, tendo posteriormente sido incluído nele alterando-se-lhe o nome para ‘liberdade de crença’, para que se prestasse a ser invocado por teístas e ateus. Afirma, por fim, que "liberdade de religião é liberdade de se ter a religião que se entende, em qualidade, ou em quantidade.  

      
II - DA RELIGIÃO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Para a análise do tema é conveniente que se traga à colação os dispositivos constitucionais a ele relativo. Vejamos:
A Constituição Federal, no artigo 5º, VI, estipula ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e garantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias.
O inciso VII afirma ser assegurado, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva.
O inciso VII do artigo 5º, estipula que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.
O artigo 19, I, veda aos Estados, Municípios, à União e ao Distrito Federal o estabelecimento de cultos religiosos ou igrejas, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.
O artigo 150, VI, "b", veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a instituição de impostos sobre templos de qualquer culto, salientando no parágrafo 4º do mesmo artigo que as vedações expressas no inciso VI, alíneas b e c, compreendem somente o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas.
O artigo 120 assevera que serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar a formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais, salientando no parágrafo 1º que o ensino religioso, de matéria facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.
O artigo 213 dispõe que os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que comprovem finalidade não-lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros em educação e assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades. Salientando ainda no parágrafo 1º que os recursos de que trata este artigo poderão ser destinados a bolsas de estudo para o ensino fundamental e médio, na forma da lei, para os que demonstrarem insuficiência de recursos, quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede pública na localidade da residência do educando, ficando o Poder Público obrigado a investir prioritariamente na expansão de sua rede na localidade.
O artigo 226, parágrafo 3º, assevera que o casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
Cada um desses dispositivos constitucionais poderia dar origem a uma monografia, porém, por uma opção meramente didática, optamos, como já se deve ter percebido, por não tratá-los por tópicos isolados, tecendo comentários sobre eles no bojo do texto.    


   
DA NECESSÁRIA SEPARAÇÃO IGREJA-ESTADO
De início podemos notar uma falta de sintonia entre a nossa fala inicial, embasada no texto constitucional, e o que ocorre cotidianamente no Brasil.
Como é possível se falar que não existe uma religião oficial quando ao abrir-se qualquer folhinha nota-se a existência de feriados oficiais de caráter religioso. E mais, de caráter santo para apenas uma religião (v.g. dia da padroeira do Brasil e finados).
Se existe uma separação entre o Estado e a Religião, será que seria constitucionalmente possível a existência desses feriados? E como ficam as datas santificadas das outras religiões: o ano novo judaico, o ano novo chinês, o período de jejum dos muçulmanos etc.?
Tal questionamento está sendo feito atualmente pela Igreja Universal do Reino de Deus. É uma pena que as atitudes da mencionada Igreja estejam também envoltas em um manto de intolerância religiosa, sendo a discussão sobre a existência dos dias santificados encarada como uma "vingança" contra a imagem da padroeira do Brasil. Tal questionamento deveria ser feito no âmbito frio e racional da Constituição, sem o apelo a lutas religiosas, perseguições etc.
Porém é bom que se ressalte que Konvitz, citando o Justice Douglas, afirma que a separação entre o Estado e a Igreja não é absoluta. Ela é limitada pelo exercício do poder de polícia do Estado(19) (e por outros poderes constitucionalmente atribuídos a este) e pelas práticas amplamente aceitas como símbolos ou tradições nacionais e que não seriam abolidas pela população mesmo que não gozassem de apoio estatal.(20)
Portanto, se a existência desses feriados é de constitucionalidade duvidosa, tal realidade é plenamente defensável face ao apego que a maioria da população tem a essas tradições, sendo que, provavelmente, grande parte da população não iria trabalhar mesmo que não fosse determinado o feriado.
Creio não ser inconstitucional a existência dos feriados religiosos em si. O que reputo ser inconstitucional é a proibição de se trabalhar nesse dia, por outras palavras, não reputo ser legítima a proibição de abertura de estabelecimentos nos feriados religiosos. Cada indivíduo, por sua própria vontade, deveria possuir a faculdade de ir ou não trabalhar. Se não desejasse trabalhar, a postura legal lhe seria favorável (abono do dia por expressa determinação legal), se resolvesse ir trabalhar não estaria obrigado a obedecer uma postura válida para uma religião que não segue. Pode-se ir mais além nesse raciocínio. Qual é a lógica da proibição de abertura de estabelecimento aos domingos? Com certeza existe uma determinação religiosa por trás da lei que proibiu a abertura de estabelecimentos nos domingos (dia de descanso obrigatório para algumas religiões). Como ficam os adeptos de outras religiões que possuem o sábado como dia de descanso obrigatório (v.g., os judeus e os adventistas)? Dever-se-ia facultar aos estabelecimentos a abertura aos sábados ou aos domingos, sendo que a ratio legis estaria assim atendida, ou seja, possibilitar o descanso semanal remunerado.
Portanto, creio que alargando o calendário de feriados e dias santificados para incluir as datas das maiores religiões existentes no nosso país e tornando estes feriados e dias santificados facultativos (no sentido de ser feita a opção entre ir trabalhar ou não), qualquer resquício de inconstitucionalidade estaria sanado.
Um problema muito mais grave está na descoberta de qual deve ser a exata postura do Estado frente às religiões (minoritárias e majoritárias).
Em que consiste a já mencionada separação de Estado e Igreja? Já vimos que o Estado brasileiro está terminantemente proibido de subvencionar qualquer religião. Vimos também que o Estado não pode obstar uma prática religiosa. Não pode adotar uma religião oficial. Não pode discriminar por critérios religiosos. Não pode fomentar disputas religiosas. Resta-nos ver o que pode o Estado fazer.
O Estado pode cooperar com as instituições religiosas na busca do interesse público (art. 19, I, da C.F.), ou seja, ele não pode manter relações de dependência ou aliança, porém pode firmar convênios com as entidades religiosas quando tais convênios atendam ao interesse público (e não ao interesse dos governantes). Aliás, pode e deve ter tal postura.  
       A experiência judicial americana nos mostra como é difícil delimitar até onde é constitucionalmente possível e permitido a cooperação entre Estado e religiões. Vários casos foram levados às Cortes americanas com relação à leitura da Bíblia (Velho Testamento-sem comentários) em sala de aula(21), com relação ao pagamento pelo Estado do ônibus escolar em Escolas Católicas(22), com relação ao planejamento das aulas na Escola Pública para que se abra um espaço para o ensino religioso(23), com relação à distribuição de Bíblias com o Novo e o Velho Testamento nas escolas(24), com relação ao descanso semanal(25). Todas as decisões foram tomadas por uma estreita margem de votos, o que demonstra a enorme polêmica que envolve o assunto.

DO ENSINO RELIGIOSO NA
REDE PÚBLICA DE ENSINO




A Constituição da República estabelece em seu artigo 210, parágrafo 1º que as escolas públicas de ensino fundamental deverão ter, obrigatoriamente, em seu curriculum, como matrícula facultativa porém dentro do horário normal de aulas, uma cadeira relacionada ao ensino religioso.
A Constituição não traça, no mencionado dispositivo, nenhum padrão de conduta para o Administrador ou para os educadores com relação à forma que se dará o ensino religioso, muito menos qual o seu conteúdo ou ainda, por ser facultativa a matrícula, não dá nenhuma dica sobre o que farão as crianças que não optarem pelo ensino religioso durante o período em que estiverem sendo ministradas as aulas relacionadas à matéria. Tais indagações ficaram sem resposta imediata devendo ser feita uma exegese de todo o texto constitucional para que se consiga dar a aplicação correta ao artigo.
Primeiramente, é conveniente repisar-se que não existe uma religião oficial no Brasil. Não existindo religião oficial, não se pode optar pela ensinança dos preceitos de nenhuma religião específica (ou melhor dizendo, não se pode optar pelo ensinamento de apenas uma religião) pois em assim ocorrendo estar-se-ia promovendo o proselitismo patrocinado pelo Poder Público.
Se está proibida a ensinança de determinada religião, qual era a intenção do Constituinte? Cremos que a intenção do Constituinte foi dar a oportunidade para que os alunos, em idade de formação de sua personalidade, possam ter informações para optar, no futuro, livremente por uma religião, ou por nenhuma religião. Na cadeira de ensino religioso deveriam ser transmitidos os fundamentos das maiores religiões existentes no Brasil, com ênfase nos aspectos que lhes são comuns: prática de boas ações, busca do bem comum, aprimoramento do caráter humano etc..
Deixa-se consignado que a implementação do ensino religioso nas escolas públicas vai passar por um grave problema que é a falta de bons profissionais, aptos a transmitir conceitos gerais sobre todas as religiões, sem tentar forçar a prevalência de suas próprias idéias, ou das idéias da religião que representa (é conveniente que se atente que à margem da quase inexistência de tais profissionais, ainda existe, na nossa realidade, a agravante das péssimas condições generalizadas do ensino de nosso país, que como regra geral, infelizmente, não oferece a possibilidade da mantença de bons quadros do magistério dentro do ensino público).
Existe, por outro lado, uma impossibilidade de que os professores sejam recrutados em determinada religião. Deve haver um concurso público em que se exija o conhecimento das linhas gerais de todas as principais religiões existentes no Brasil: religiões de origem africana, católica, evangélica, judaica, muçulmana, budista etc., pois só assim os professores estarão, pelo menos em tese, aptos a transmitir as idéias com um grau relativo de isenção.
Outra questão que deverá ser solucionada é a relativa a facultatividade da matrícula. Será que existe a facultatividade constitucionalmente prevista? Sendo que a matéria relativa ao ensino religioso deverá ser ministrada no horário normal de aula, aonde ficarão os alunos que não fizerem a opção por ela? Se não houver uma opção viável, não há que se falar em facultativa. Se a opção for ficar sem fazer nada durante o período das aulas, ou ainda, ficar tendo aula de uma das matérias tradicionais, com certeza a "facultatividade" estará ameaçada.
Por derradeiro, outro ponto a ser analisado é relacionado à pressão do grupo: se noventa por cento de uma classe se dispuser a ter aula de determinada religião (no caso de não ser seguida a interpretação que fizemos relacionada com a obrigatoriedade de serem ministradas aulas sobre todas as correntes religiosas), como se sentirão os dez por cento da classe que por não fazerem parte da religião majoritária, ou por não possuírem nenhuma convicção religiosa? Fatalmente o grupo exercerá uma forte pressão sobre as crianças que ainda estão em estágio de formação de idéias.
Pelos argumentos colacionados cremos que foi infeliz o legislador constituinte ao determinar que o ensino religioso deva ser ministrado dentro do horário normal das escolas públicas, devendo, portanto, ser revisto este dispositivo, pois está em contradição com o bojo da Constituição Federal no tocante à separação obrigatória entre o Estado e os entes religiosos, sob pena do Estado vir a patrocinar o proselitismo.


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